Do evitável utilitarismo à inevitável utilidade, ou duma utilidade que não nos reduza a utensílios.
1. A inevitável utilidade advém-nos da nossa complementaridade essencial e subsidiária, não só descendente, como estímulo e apoio (subsidium) dos corpos sociais superiores aos intermédios e básicos, mas também recíproca, como entreajuda de todos a todos.
Houve e há pessoas que se isolam e abstraem de relações funcionais, tanto quanto podem. Mas só conseguem subsistir com a maior ou menor utilidade dos outros e da própria natureza. Mesmo um espírito tão desprendido e gratuito como Francisco de Assis, agradece a “irmã água” por ser “tão útil…” (Espelho de perfeição, 120).
2. A utilidade pode ser prática e imediata ou simbólica e definitiva, referente aos fins últimos, por muitos procurados, quando não temidos.
A utilidade prática é a que nos possibilita estar agora aqui: respiramos, comemos, bebemos, viajamos, deslocamo-nos, podemos comunicar e ser ouvidos em boas condições… Tudo isto pressupõe uma longa série de utilidades básicas, pessoais e técnicas, da qualidade do ar e dos alimentos aos meios de transporte e comunicação, além de muitas outras habilitações conseguidas e disponíveis, segurança inclusive.
A utilidade simbólica é a que nos possibilita partilhar ideias e saberes, ou sentimentos e expectativas. São sempre resumos disponíveis – arduamente atingidos e disponibilizados -, que nos permitem prosseguir nos vários campos do conhecimento ou da expectativa. Com vários níveis de apuramento e captação, que não devem ser confundidos, a utilidade simbólica pode incluir itens tão variados como ciência, artes, literaturas, tradições ou religiões.
Em suma, um variado complexo de utilidades práticas e simbólicas, cuja “indispensabilidade” se acrescentou e generalizou muitíssimo nas últimas décadas.
3. Podemos até dizer que a composição ou a recomposição social se têm feito em termos de utilidade e funcionalidade mútuas. Em todos os indo-europeus, por exemplo, foi detectável durante séculos e séculos a tripartição entre trabalhadores, que garantiam o sustento material do todo, os guerreiros, que garantiam a defesa, e os sacerdotes, que proporcionavam a segurança última de vivos e mortos.
Poderemos também constatar que, quando outras funções se tornaram possíveis e mais prementes – burgueses, letrados, etc. – aquela trifuncionalidade se alterou, ainda que possa subsistir em novos moldes.
4. Importante foi também, na modernidade europeia e a partir desta, a possibilidade e o alargamento das escolhas individuais, que fizeram retrair em cada um a funcionalidade que anteriormente estava quase sempre predeterminada à nascença, perpetuando padrões sociais ou ofícios herdados.
Isto mesmo permitiu escolher utilidades e até utilidade nenhuma, a escolha entre negócio e ócio, quando não a valorização deste mesmo. Foi um longo percurso, como nos esclarece o seguinte trecho, referente à nossa história “moderna” (sécs. XV – XVIII): “A generalidade das crianças não era objecto de instrução literária: a principal aprendizagem era ainda a de saber viver de acordo com a sua condição social. Para tanto, os nobres entregavam os filhos na corte ou a fidalgos de condição superior. […] Para as crianças das camadas populares, o trabalho era uma realidade mal se achavam capazes de desempenhar uma actividade social e economicamente útil. A maior parte começava mesmo antes dos sete anos a efectuar tarefas que contribuíam de algum modo para a economia doméstica (olhar por irmãos mais novos, limpeza da casa, ajuda na criação de animais, etc.). A entrada no mundo do trabalho era precoce, e podia implicar a ida do campo para a cidade por volta do início da adolescência ou mesmo antes. Rapazes e raparigas podiam ir servir quer como criados de lavoura quer como servidores domésticos; os rapazes podiam aprender um ofício artesanal. Outras formas de deslocação se abriam aos rapazes no início da adolescência: o embarque num navio para a Índia ou a emigração para o Brasil; mesmo a vida de missionário nas terras do Império podia começar muito cedo” (Isabel dos Guimarães Sá - As crianças e as idades da vida. In História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna [= HVPP], coord. Nuno Gonçalo Monteiro, Círculo de Leitores, 2011, p. p. 83-85).
5. A revolução industrial, em fases sucessivas, alterou também a natureza dos saberes e da própria ciência. Ao ideal escolástico do saber complexo para o homem completo - discorrendo de aplicação em aplicação pelas artes e a medicina, as leis e os cânones, a teologia por fim -, ou do humanismo renascentista, que detalhou e aprofundou cada ramo, sem nunca perder a ambição universal, seguiram-se urgências de aplicação prática e lucrativa que tanto impulsionaram como condicionaram os objectivos do estudo. Não tanto “o quê”, mas sobretudo o “para quê”, aferido pela utilidade imediata e concreta. Colombo podia colorir de teologia os seus projectos, mas foram as “Índias” que lhe proporcionaram uma armada.
A pouco e pouco, assistimos à redução tecnológica das ciências, que modificou profundamente o seu estatuto, requerendo-lhe aplicação prática e rentável muito célere. Não são apenas os espíritos “enciclopédicos” da escolástica, como o nosso Pedro Hispano, ou do renascimento, como Leonardo da Vinci, que se tornam hoje “impraticáveis”; é o conjunto geral dos saberes que se “desconjuntou”, em tratamentos parcelares, úteis e, quanto possível, rápidos; mesmo agora, quando se quebra a relação directa estudo-emprego. Não é por acaso que a transmissão cultural se torna mais difícil no tocante à universalidade quantitativa e qualitativa – a matemática e a língua.
Cabem aqui alguns comentários a propósito. González-Carvajal, professor madrileno, escreveu o seguinte: “Durante muito tempo foi lugar comum afirmar que a modernidade constituía a ‘era da razão’. Mas essa ‘razão’ não é já a razão dos filósofos, nem sequer a dos cultores da ciência pura, antes a razão dos técnicos; essa mesma que Horkeimer baptizou como ‘razão instrumental’. […] Hoje generalizou-se a convicção de que os únicos problemas importantes são os problemas técnicos. Tal se manifesta, por exemplo, na tendência dos Estados modernos para não proteger as ciências que carecem de aplicações práticas: filosofia, teologia, história, etc.” (cf. Luís González-Carvajal – Ideas y creencias del hombre actual, Santander, Editorial Sal Terrae, 5ª edição, 2000, p. 77).
Talvez agora se esteja a rever tal atitude… Mas, para o justamente conhecido professor de Grenoble, Gilles Lipovetsky, o que está em causa é ainda o ponto fundamental da felicidade humana, ligada mas não esgotável pelos avanços tecnológicos: “Enquanto prossegue a dominação tecnocientífica, perpetua-se a impotência para governar a felicidade. O nosso poder sobre as coisas segue uma curva exponencial; o poder que exercemos sobre a alegria de existir marca passo. O projecto de poder ilimitado dos Modernos atinge aqui, claramente, os seus limites; a felicidade não progride, escapa obstinadamente ao controlo dos homens. É certo que não podemos dissociar a busca da felicidade dos avanços do mundo técnico, e no entanto continua a existir um enorme fosso entre os caminhos seguidos por estes dois universos” (Gilles Lipovetsky, A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, Lisboa, Edições 70, 2007, p. 303).
6. De modo só aparentemente contrário, a utilidade fixa das sociedades antigas deu lugar à utilidade optativa da generalidade oito e novecentista. O que se passou foi antes a desvalorização dalgumas actividades simbólicas e relativamente gratuitas, que algum iluminismo dispensara e algum modernismo contrariara, certamente por se sentiram mais seguros na vida presente e menos temerosos do que sobrasse dela…
As artes transitaram para espaços domésticos e sociais, aí mesmo onde o divertimento se tornou funcional e útil, em novos moldes e com público e consumo sempre crescentes. Pouco a pouco, tornou-se corrente uma linguagem essencialmente inaceitável, como “comprar” e “vender” jogadores, neste ou naquele “mercado” desportivo…
Por outro lado, a avaliação geral das coisas em termos de “utilidade” levou a extinguir muitos centros de produção cultural agora considerados “ociosos” – precisamente aquela “metade dos nossos sábios”, como Herculano considerava os exclaustrados de 1834.
Desapareceram então muitos espaços de assim dita “inutilidade”, precisamente quando ela seria mais viável a prazo, pela superação progressista de “necessidade”. Em seu lugar e por outras razões, disseminaram-se novos espaços de encontro, também mais opcionais e imprevisíveis, num movimento assim resumido em obra recente, das academias setecentistas para os cafés que se seguiram até aos nossos dias: “As academias contribuíram para consolidar os circuitos de circulação das notícias e estimular uma nova forma de sociabilidade. Os membros das várias academias mantêm entre si relações sociais e culturais que extravasam os círculos tradicionais da universidade, da corte e da família. […] Os salões e os cafés criaram oportunidades de interacção social e intelectual, de discussão crítica, através das quais alteraram os códigos tradicionais de participação política e cultural. Mas existe uma diferença fundamental entre ambos: o salão, ou a assembleia, decorrem num espaço privado, não se entra aí sem convite nem se fala aí livremente; o café é um espaço semipúblico (no sentido em que é propriedade privada mas o acesso é, em princípio, aberto a todos) onde se entra e sai à vontade, a qualquer dia da semana e a qualquer hora do dia” (Maria Alexandre Lousada – Novas formas: vida privada, sociabilidades culturais e emergência do espaço público. In HVPP, p. 453-454).
7. Oscilamos entre utilitarismos vários, todos definidores da utilidade e inutilidades. Para uns, é útil o que possibilitar a inutilidade compensatória de trabalhos feitos. Para outros, é útil o que imediatamente se fique pela satisfação individual, mesmo desligada da necessidade de todos, o que também esvazia o trabalho do seu significado humanizante e social: “Na sociedade do hiperconsumo, a principal preocupação do indivíduo não é superar-se, mas poder usufruir de um rendimento confortável para participar plenamente no universo das satisfações proporcionadas pelo mercado. Se alguns intelectuais e alguns grupos utopistas exaltam um modo de vida menos dependente do dinheiro e dos produtos, é pouco provável que esta sabedoria frugal triunfe diante do poder sedutor das felicidades ‘fáceis’ repetidamente anunciadas pelo universo consumista” (Lipovetsky - A felicidade paradoxal, p. 228-229).
Nas últimas décadas europeias, a crítica teórica e prática tem posto em causa o colectivismo e o individualismo, herdados de oitocentos. São sobremaneira questionados pelo pós-modernismo e pelo personalismo, cada um a seu modo. Da segunda guerra mundial herdámos impérios que pareciam sistematizar o colectivismo ou o individualismo, com desenvolvimentos próprios certamente. Mas a trágica interrogação que esse grande conflito nos deixou foi dissolvendo as ideologias em confronto, pela densidade humana que delas sobejava, mais e mais.
Sobraram o desgosto ou o gosto, o horizonte encurtado e disponível, o experiencialismo, mais subjectivo do que a anterior objectividade experimental. Consequentemente, o debate útil - inútil quase perdeu razão de ser, definindo-se em cada sujeito e vontade.
E é ainda Lipovetsky quem nos ilustra isto mesmo, a propósito do próprio design e da sua evolução recente: “O design hipermoderno privilegia o ligeiro, a mobilidade e a adaptabilidade, a associação do funcional e do sentido, do depurado e do convivial, do nómada e do lúdico. É um conforto psicológico e sensitivo que visa o neodesign, ecoando o sistema de referências do hiperindivíduo liberto de barreiras. […] O design intransigente da Bauhaus constituiu-se em torno da fé no progresso e na racionalidade tecnicista do engenheiro; exprimiu uma cultura que glorificava a eficácia pura, o depuramento das formas, a razão conquistadora, a vitória sobre as forças arcaicas do passado. A realidade actual é outra. […] O objecto já não é um hino à racionalidade construtivista e mecanicista, mas à felicidade sensitiva que implica um conforto de ‘rosto humano’, apropriável e habitável” (Lipovetsky – A felicidade paradoxal, p. 198-199).
8. Desenvolvera-se, entretanto, algum “personalismo”, que ultrapassara a oposição individualismo – colectivismo, acentuando a dimensão relacional de cada um, como sujeito de reflexão e decisão, só possíveis com outros e para outros. De algum modo, o debate útil – inútil será resolvido no reconhecimento mútuo de capacidades e disponibilidades.
Gosto, contragosto e desgosto ganharão outro significado, se forem convividos, além de vividos. Será útil o que servir a cada um, servindo também aqueles com quem ele necessariamente coexiste e que reflexamente o “configuram”. E, dizendo “pessoa”, diz-se pensamento e gesto recebidos e comunicados, no trabalho ou na festa, podendo – ou devendo? – ser trabalho festivo e até festa trabalhosa, cuidada e inclusiva.
Sabemos como, para resolver muito mal-estar, é preciso muito estar-com, mesmo sem resultados imediatos e quantificáveis. Mais ou menos como nos é dito que a floresta variada e longeva importa mais para o futuro do que plantio sucessivo de arvoredo monótono e esgotador…
E o mesmo se diga das nossas cidades, para que realizem tal nome: lugares de “concidadania”, urbanisticamente plasmada e possibilitada, proporcionando encontros em que a “inutilidade” anterior se torne agora da maior “utilidade” futura, para um indispensável e solidário civismo, onde o acontecer nasça do conviver. Conservando também a memória histórica e monumental, essa mesma que já foi sacrificada aos resultados rápidos e funcionais que nos esqueceram a tantos, como devir intergeracional sinalizado.
Entre “pessoas” o tempo nunca é dinheiro, pois cada uma delas é o máximo valor. Com a “inutilidade” que finalmente são, ainda que nisso mesmo sejam úteis à personalidade real de nós todos.
Manuel Clemente
Bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
Conferência de abertura da Experimentadesign 2011
Lisboa, 28.9.2011
Houve e há pessoas que se isolam e abstraem de relações funcionais, tanto quanto podem. Mas só conseguem subsistir com a maior ou menor utilidade dos outros e da própria natureza. Mesmo um espírito tão desprendido e gratuito como Francisco de Assis, agradece a “irmã água” por ser “tão útil…” (Espelho de perfeição, 120).
2. A utilidade pode ser prática e imediata ou simbólica e definitiva, referente aos fins últimos, por muitos procurados, quando não temidos.
A utilidade prática é a que nos possibilita estar agora aqui: respiramos, comemos, bebemos, viajamos, deslocamo-nos, podemos comunicar e ser ouvidos em boas condições… Tudo isto pressupõe uma longa série de utilidades básicas, pessoais e técnicas, da qualidade do ar e dos alimentos aos meios de transporte e comunicação, além de muitas outras habilitações conseguidas e disponíveis, segurança inclusive.
A utilidade simbólica é a que nos possibilita partilhar ideias e saberes, ou sentimentos e expectativas. São sempre resumos disponíveis – arduamente atingidos e disponibilizados -, que nos permitem prosseguir nos vários campos do conhecimento ou da expectativa. Com vários níveis de apuramento e captação, que não devem ser confundidos, a utilidade simbólica pode incluir itens tão variados como ciência, artes, literaturas, tradições ou religiões.
Em suma, um variado complexo de utilidades práticas e simbólicas, cuja “indispensabilidade” se acrescentou e generalizou muitíssimo nas últimas décadas.
3. Podemos até dizer que a composição ou a recomposição social se têm feito em termos de utilidade e funcionalidade mútuas. Em todos os indo-europeus, por exemplo, foi detectável durante séculos e séculos a tripartição entre trabalhadores, que garantiam o sustento material do todo, os guerreiros, que garantiam a defesa, e os sacerdotes, que proporcionavam a segurança última de vivos e mortos.
Poderemos também constatar que, quando outras funções se tornaram possíveis e mais prementes – burgueses, letrados, etc. – aquela trifuncionalidade se alterou, ainda que possa subsistir em novos moldes.
4. Importante foi também, na modernidade europeia e a partir desta, a possibilidade e o alargamento das escolhas individuais, que fizeram retrair em cada um a funcionalidade que anteriormente estava quase sempre predeterminada à nascença, perpetuando padrões sociais ou ofícios herdados.
Isto mesmo permitiu escolher utilidades e até utilidade nenhuma, a escolha entre negócio e ócio, quando não a valorização deste mesmo. Foi um longo percurso, como nos esclarece o seguinte trecho, referente à nossa história “moderna” (sécs. XV – XVIII): “A generalidade das crianças não era objecto de instrução literária: a principal aprendizagem era ainda a de saber viver de acordo com a sua condição social. Para tanto, os nobres entregavam os filhos na corte ou a fidalgos de condição superior. […] Para as crianças das camadas populares, o trabalho era uma realidade mal se achavam capazes de desempenhar uma actividade social e economicamente útil. A maior parte começava mesmo antes dos sete anos a efectuar tarefas que contribuíam de algum modo para a economia doméstica (olhar por irmãos mais novos, limpeza da casa, ajuda na criação de animais, etc.). A entrada no mundo do trabalho era precoce, e podia implicar a ida do campo para a cidade por volta do início da adolescência ou mesmo antes. Rapazes e raparigas podiam ir servir quer como criados de lavoura quer como servidores domésticos; os rapazes podiam aprender um ofício artesanal. Outras formas de deslocação se abriam aos rapazes no início da adolescência: o embarque num navio para a Índia ou a emigração para o Brasil; mesmo a vida de missionário nas terras do Império podia começar muito cedo” (Isabel dos Guimarães Sá - As crianças e as idades da vida. In História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna [= HVPP], coord. Nuno Gonçalo Monteiro, Círculo de Leitores, 2011, p. p. 83-85).
5. A revolução industrial, em fases sucessivas, alterou também a natureza dos saberes e da própria ciência. Ao ideal escolástico do saber complexo para o homem completo - discorrendo de aplicação em aplicação pelas artes e a medicina, as leis e os cânones, a teologia por fim -, ou do humanismo renascentista, que detalhou e aprofundou cada ramo, sem nunca perder a ambição universal, seguiram-se urgências de aplicação prática e lucrativa que tanto impulsionaram como condicionaram os objectivos do estudo. Não tanto “o quê”, mas sobretudo o “para quê”, aferido pela utilidade imediata e concreta. Colombo podia colorir de teologia os seus projectos, mas foram as “Índias” que lhe proporcionaram uma armada.
A pouco e pouco, assistimos à redução tecnológica das ciências, que modificou profundamente o seu estatuto, requerendo-lhe aplicação prática e rentável muito célere. Não são apenas os espíritos “enciclopédicos” da escolástica, como o nosso Pedro Hispano, ou do renascimento, como Leonardo da Vinci, que se tornam hoje “impraticáveis”; é o conjunto geral dos saberes que se “desconjuntou”, em tratamentos parcelares, úteis e, quanto possível, rápidos; mesmo agora, quando se quebra a relação directa estudo-emprego. Não é por acaso que a transmissão cultural se torna mais difícil no tocante à universalidade quantitativa e qualitativa – a matemática e a língua.
Cabem aqui alguns comentários a propósito. González-Carvajal, professor madrileno, escreveu o seguinte: “Durante muito tempo foi lugar comum afirmar que a modernidade constituía a ‘era da razão’. Mas essa ‘razão’ não é já a razão dos filósofos, nem sequer a dos cultores da ciência pura, antes a razão dos técnicos; essa mesma que Horkeimer baptizou como ‘razão instrumental’. […] Hoje generalizou-se a convicção de que os únicos problemas importantes são os problemas técnicos. Tal se manifesta, por exemplo, na tendência dos Estados modernos para não proteger as ciências que carecem de aplicações práticas: filosofia, teologia, história, etc.” (cf. Luís González-Carvajal – Ideas y creencias del hombre actual, Santander, Editorial Sal Terrae, 5ª edição, 2000, p. 77).
Talvez agora se esteja a rever tal atitude… Mas, para o justamente conhecido professor de Grenoble, Gilles Lipovetsky, o que está em causa é ainda o ponto fundamental da felicidade humana, ligada mas não esgotável pelos avanços tecnológicos: “Enquanto prossegue a dominação tecnocientífica, perpetua-se a impotência para governar a felicidade. O nosso poder sobre as coisas segue uma curva exponencial; o poder que exercemos sobre a alegria de existir marca passo. O projecto de poder ilimitado dos Modernos atinge aqui, claramente, os seus limites; a felicidade não progride, escapa obstinadamente ao controlo dos homens. É certo que não podemos dissociar a busca da felicidade dos avanços do mundo técnico, e no entanto continua a existir um enorme fosso entre os caminhos seguidos por estes dois universos” (Gilles Lipovetsky, A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, Lisboa, Edições 70, 2007, p. 303).
6. De modo só aparentemente contrário, a utilidade fixa das sociedades antigas deu lugar à utilidade optativa da generalidade oito e novecentista. O que se passou foi antes a desvalorização dalgumas actividades simbólicas e relativamente gratuitas, que algum iluminismo dispensara e algum modernismo contrariara, certamente por se sentiram mais seguros na vida presente e menos temerosos do que sobrasse dela…
As artes transitaram para espaços domésticos e sociais, aí mesmo onde o divertimento se tornou funcional e útil, em novos moldes e com público e consumo sempre crescentes. Pouco a pouco, tornou-se corrente uma linguagem essencialmente inaceitável, como “comprar” e “vender” jogadores, neste ou naquele “mercado” desportivo…
Por outro lado, a avaliação geral das coisas em termos de “utilidade” levou a extinguir muitos centros de produção cultural agora considerados “ociosos” – precisamente aquela “metade dos nossos sábios”, como Herculano considerava os exclaustrados de 1834.
Desapareceram então muitos espaços de assim dita “inutilidade”, precisamente quando ela seria mais viável a prazo, pela superação progressista de “necessidade”. Em seu lugar e por outras razões, disseminaram-se novos espaços de encontro, também mais opcionais e imprevisíveis, num movimento assim resumido em obra recente, das academias setecentistas para os cafés que se seguiram até aos nossos dias: “As academias contribuíram para consolidar os circuitos de circulação das notícias e estimular uma nova forma de sociabilidade. Os membros das várias academias mantêm entre si relações sociais e culturais que extravasam os círculos tradicionais da universidade, da corte e da família. […] Os salões e os cafés criaram oportunidades de interacção social e intelectual, de discussão crítica, através das quais alteraram os códigos tradicionais de participação política e cultural. Mas existe uma diferença fundamental entre ambos: o salão, ou a assembleia, decorrem num espaço privado, não se entra aí sem convite nem se fala aí livremente; o café é um espaço semipúblico (no sentido em que é propriedade privada mas o acesso é, em princípio, aberto a todos) onde se entra e sai à vontade, a qualquer dia da semana e a qualquer hora do dia” (Maria Alexandre Lousada – Novas formas: vida privada, sociabilidades culturais e emergência do espaço público. In HVPP, p. 453-454).
7. Oscilamos entre utilitarismos vários, todos definidores da utilidade e inutilidades. Para uns, é útil o que possibilitar a inutilidade compensatória de trabalhos feitos. Para outros, é útil o que imediatamente se fique pela satisfação individual, mesmo desligada da necessidade de todos, o que também esvazia o trabalho do seu significado humanizante e social: “Na sociedade do hiperconsumo, a principal preocupação do indivíduo não é superar-se, mas poder usufruir de um rendimento confortável para participar plenamente no universo das satisfações proporcionadas pelo mercado. Se alguns intelectuais e alguns grupos utopistas exaltam um modo de vida menos dependente do dinheiro e dos produtos, é pouco provável que esta sabedoria frugal triunfe diante do poder sedutor das felicidades ‘fáceis’ repetidamente anunciadas pelo universo consumista” (Lipovetsky - A felicidade paradoxal, p. 228-229).
Nas últimas décadas europeias, a crítica teórica e prática tem posto em causa o colectivismo e o individualismo, herdados de oitocentos. São sobremaneira questionados pelo pós-modernismo e pelo personalismo, cada um a seu modo. Da segunda guerra mundial herdámos impérios que pareciam sistematizar o colectivismo ou o individualismo, com desenvolvimentos próprios certamente. Mas a trágica interrogação que esse grande conflito nos deixou foi dissolvendo as ideologias em confronto, pela densidade humana que delas sobejava, mais e mais.
Sobraram o desgosto ou o gosto, o horizonte encurtado e disponível, o experiencialismo, mais subjectivo do que a anterior objectividade experimental. Consequentemente, o debate útil - inútil quase perdeu razão de ser, definindo-se em cada sujeito e vontade.
E é ainda Lipovetsky quem nos ilustra isto mesmo, a propósito do próprio design e da sua evolução recente: “O design hipermoderno privilegia o ligeiro, a mobilidade e a adaptabilidade, a associação do funcional e do sentido, do depurado e do convivial, do nómada e do lúdico. É um conforto psicológico e sensitivo que visa o neodesign, ecoando o sistema de referências do hiperindivíduo liberto de barreiras. […] O design intransigente da Bauhaus constituiu-se em torno da fé no progresso e na racionalidade tecnicista do engenheiro; exprimiu uma cultura que glorificava a eficácia pura, o depuramento das formas, a razão conquistadora, a vitória sobre as forças arcaicas do passado. A realidade actual é outra. […] O objecto já não é um hino à racionalidade construtivista e mecanicista, mas à felicidade sensitiva que implica um conforto de ‘rosto humano’, apropriável e habitável” (Lipovetsky – A felicidade paradoxal, p. 198-199).
8. Desenvolvera-se, entretanto, algum “personalismo”, que ultrapassara a oposição individualismo – colectivismo, acentuando a dimensão relacional de cada um, como sujeito de reflexão e decisão, só possíveis com outros e para outros. De algum modo, o debate útil – inútil será resolvido no reconhecimento mútuo de capacidades e disponibilidades.
Gosto, contragosto e desgosto ganharão outro significado, se forem convividos, além de vividos. Será útil o que servir a cada um, servindo também aqueles com quem ele necessariamente coexiste e que reflexamente o “configuram”. E, dizendo “pessoa”, diz-se pensamento e gesto recebidos e comunicados, no trabalho ou na festa, podendo – ou devendo? – ser trabalho festivo e até festa trabalhosa, cuidada e inclusiva.
Sabemos como, para resolver muito mal-estar, é preciso muito estar-com, mesmo sem resultados imediatos e quantificáveis. Mais ou menos como nos é dito que a floresta variada e longeva importa mais para o futuro do que plantio sucessivo de arvoredo monótono e esgotador…
E o mesmo se diga das nossas cidades, para que realizem tal nome: lugares de “concidadania”, urbanisticamente plasmada e possibilitada, proporcionando encontros em que a “inutilidade” anterior se torne agora da maior “utilidade” futura, para um indispensável e solidário civismo, onde o acontecer nasça do conviver. Conservando também a memória histórica e monumental, essa mesma que já foi sacrificada aos resultados rápidos e funcionais que nos esqueceram a tantos, como devir intergeracional sinalizado.
Entre “pessoas” o tempo nunca é dinheiro, pois cada uma delas é o máximo valor. Com a “inutilidade” que finalmente são, ainda que nisso mesmo sejam úteis à personalidade real de nós todos.
Manuel Clemente
Bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
Conferência de abertura da Experimentadesign 2011
Lisboa, 28.9.2011
{Conferência reproduzida, com a devida vénia, daqui}
Sem comentários:
Enviar um comentário