«Foi músico, poeta, professor, tradutor de Proust, investigador. E, além de tudo, frade dominicano. Homem despojado, queria “net-monges” e olhava para a estética como central na experiência cristã contemporânea. Morreu quinta-feira [5 de Maio de 2011], em Lisboa.
Num dos textos de
A Palavra e o Espelho (ed. Paulinas), escrevia José Augusto Mourão: “A vida tornou-se texto a partir do meu corpo. Já sou texto. A História, o amor, a violência, o tempo, o trabalho, o desejo, inscrevem-se no meu corpo.” A vida de José Augusto Mourão, nascido em Lordelo, Vila Real, em 12 de Junho de 1947 e que morreu quinta-feira passada, em Lisboa, tornou-se texto a partir do seu corpo.
“Nós somos corpos saturados de texto, arquivos do corpo abandonados à traça, sem memória, textos enterrados ou que já não fazem andar, não movem, não comovem. Que fizemos do testamento do amor? Que fazemos da promessa da novidade?”, escrevia ainda, naquele artigo que reproduzia uma das suas homilias.
Vivia entre dois mundos, este homem discreto, tímido: “É o mundo da palavra – a minha paixão – mas uma palavra que tem uma fronteira. Estou entre esse mundo, o mundo de Deus, e o mundo dos homens – que não há outro.”
Era uma vida polissémica, tal como o seu objecto de investigação universitária. Professor e investigador, académico reconhecido, foi um dos introdutores da semiótica em Portugal. “É um dos nomes de referência nesta área”, diz ao P2 Maria Augusta Babo, professora na Universidade Nova de Lisboa (UNL), onde foi colega de Mourão durante mais de década e meia.
Havia ainda, então, o mundo de Deus. Era frade dominicano. A sua vocação religiosa, aliada ao trabalho sobre a palavra, levou-o a escrever poesia (reunida em 2010 em
O Nome e a Forma, ed. Pedra Angular), além de centenas de textos para cânticos litúrgicos. Mas, apesar das múltiplas vias da sua vida, nem a sua personalidade se fraccionava nem ele procurava impor a sua fé. “Nunca foi impositivo”, reconhece Babo.
Este percurso singular, original, começou em Lordelo. A mãe morreu-lhe tinha José Augusto quatro anos, o pai era professor primário e, “situação quase inconcebível numa aldeia daquele tempo, não era sequer praticante”, contou numa entrevista a Maria João Seixas, na «Pública» de 8 de Junho de 2003. Tinha mais quatro irmãs.
No final da primária, José Augusto foi para o Seminário de Vila Real, após o que demandou o Porto, para estudar teologia. Constou então que ele se rebelara contra o bispo de Vila Real. Por isso, outro bispo, o de Nampula (Moçambique, ainda uma colónia), Manuel Vieira Pinto, acolheu-o durante dois anos para trabalhar na formação de líderes cristãos locais. Antes de partir, outro bispo, D. António Ferreira Gomes, dissera-lhe num pequeno almoço: “Você é um esteta. Não vá para a tropa, que entorpece a sensibilidade.”
Mas, em 1972, Mourão foi para Moçambique. Viu-se importunado pela PIDE, sob o argumento de que “andava a agitar padres de cor”, como contava na entrevista citada. Foi forçado a regressar a Portugal, terminando então o curso de Teologia. Cruza-se com dois dominicanos — frei Bernardo Domingues e frei Mateus Peres — que serão decisivos para que integre a Ordem dos Pregadores, o que aconteceu em 1974, aceitando ser ordenado padre apenas sete anos depois.
Já nessa altura se sentia atraído pela questão da linguagem e da palavra. Em outra entrevista ao Público, em 13 de Janeiro de 2001, dizia que “o primeiro grau de proximidade dos seres, o que nos liga, é a palavra”.
Perto de Umberto Eco
Em Lyon, França, frequentou um curso de Semiótica e estudou a Bíblia com o método estruturalista. Passou por várias escolas francesas, acabando a fazer uma pósgraduação na UNL, onde leccionava Semiótica, E-Textualidades e Hiperficção e Cultura. Por ali ficou, acabando como professor associado com agregação.
Nos últimos anos, dirigiu a Revista de Comunicação e Linguagens. Era também membro do comité executivo da Associação Internacional de Estudos Semióticos e de várias instituições académicas portuguesas e internacionais. Nos dominicanos, presidiu ao Instituto São Tomás de Aquino. E, o ano passado, integrava o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, da Igreja Católica.
Entre outras obras, publicou
A visão de Túndalo: em torno da semiótica das Visões (ed. INIC);
Sujeito, Paixão e Discurso. Trabalhos de Jesus (Vega);
O fulgor é móvel – Em Torno da Obra de Maria Gabriela Llansol (Roma);
A Palavra e o Espelho (Paulinas) e
Luz Desarmada (Prefácio), que recolhem homilias ligadas ao calendário litúrgico; e
O Nome e a Forma, que reúne a sua poesia. Daqui a dias, sairá
Quem vigia o vento não semeia (Pedra Angular), com mais um conjunto de homilias.
Co-director do
Dicionário Histórico das Ordens e Instituições em Portugal (Gradiva), José Augusto Mourão traduziu, entre outros textos,
A rosa é sem porquê, de Angelus Silesius,
Sobre a leitura, de Marcel Proust, e
A função da poesia, de Jerónimo Savonarola (todos na Vega).
Temas como o sujeito, a estética ou o sofrimento estão muito presentes na sua obra, que abrange uma grande diversidade de objectos de análise: ciência e religião, o corpo, a literatura, a Internet, o hipertexto são o mote para dezenas de artigos ou abordagens, quer nas suas obras, quer nos textos do site http://triplov.org/. “A rede é uma procura, virtual que seja, multicultural, de encontro com o outro.” Defendia, na entrevista de 2001, que são necessários “netmonges”, mas alertava: “Há uma ilusão de liberdade dentro da Internet, não estamos nada libertos da aranha global que é a censura.”
“Estava mais perto de Umberto Eco”, diz Maria Augusta Babo. “Pela diversidade de abordagens, já que a semiótica tende a considerar que todo o objecto e todo o mundo envolvente são passíveis de ser lidos”.
Era um pensamento aberto, que recusava, como ele escrevia, o silenciamento das “vozes dissonantes”. Ou a “servidão” e a “bajulação, que são as passadeiras do poder”. E que entendia a dimensão estética como fundamental. Aliás, sobre a sua poesia, escreve José Tolentino Mendonça, outro padre-poeta: “A profecia não tem apenas uma dicção ética e social. Ela formula-se também como estética. Na sua intransigente solidão, José Augusto Mourão tem representado o aguilhão e o vislumbre, o combate e a dança, pois é um lugar profético a margem donde nos fala.”
Essa dimensão da estética levava-o a desejar que os fiéis estivessem “de corpo presente” nas missas: “O corpo não está” na liturgia, afirmava, na entrevista a Maria João Seixas. E defendia a atenção às homilias, às orações, aos cânticos, ao espaço da celebração: “A Palavra de Deus é muito mais radical do que todas as outras e, para ser ouvida, precisa de mediações como as homilias, como a alegria e a beleza dos cânticos, como a géstica e os rituais.” E referia o exemplo de “comunidades quentes” como a dos monges de Taizé, em França, onde a liturgia é “a mais emotiva e a mais bela”.
Antes de morrer, José Augusto Mourão doou o seu corpo à investigação médica. No texto "Requiescant in pacem” (“Descansem em paz”, em
http://triplov.com/semas/2009/Finados.html), escreveu: “Morrer (…) é exilar-se, romper a ligação com os amigos, uma partida para uma outra morada, uma outra economia.”
Nos últimos tempos de vida, apesar da doença, agradecia a todos os que o visitavam. No poema de questão em questão, diz: “Conduz-nos, Deus,/ de questão em questão,/ de fogo em fogo,/ sem satisfações que ao tempo bastem/ e a nós assombrem.”»
António Marujo, «P2», Público, 10 de Maio de 2011